segunda-feira, 23 de novembro de 2015

Cavalos em movimento - Hugo Milhanas Machado

Uma vez disse que gostava de entrar em Lisboa a cavalo, que partia de muito longe, nem sabe de onde, e que ia por aí fora comendo terras e terras a caminho do cotovelo do mar, desse recosto de terra onde, diz, bate e bate o mar, e entrar na cidade montado no seu cavalo com ar fresco e sorriso montado, e a malta toda a ver, todo o mundo na rua com metais coloridos e braços altos tipo estátuas de vidro, mas um vidro diferente, que não sabe bem explicar, e entra na cidade e vai por aí fora, desfaz as ruas que muitos tempos antes, muitos anos antes palmilhara sem freio, quando ali morava ou passava perto ou simplesmente se imaginava pisando aqueles passeios, diz ele que se vê entrar na cidade montado no cavalo e que depois chega à porta de casa e diz já cá estou, e entra em casa montado no cavalo, tira qualquer coisa da mochila e arranca em sentido contrário, retomando o trilho que o levara até ali. Uma vez disse que gostava de montar uma tenda em Fuerteventura, mas que só sabe Fuerteventura depois de escutar o disco de uma madrilena que faz o sol inchar quando faz sol e a chuva engrossar no corpo quando chove, que gosta, que quer chegar lá e montar uma tenda e ser valente, correr descalço nos vulcões e pisar o mar, pisar do mar, diz, que a grande valentia é saber pisar do mar, e que a valentia é a parte gorda da vida, e quando disse isto nós sorrimos, nós gostamos e ficamos a pensar em Fuerteventura e nos cavalos em Lisboa, diz que chega e monta a tenda nas praias de Fuerteventura e depois fala numa selva, numa selva que não é dali, que corre num cavalo pelo meio do arvoredo e que corre cada vez mais depressa e o arvoredo não acaba, que passadas umas horas se apercebe que afinal o cavalo não corre e que portanto ele está sentado num tempo grosso mas um tempo ágil, nervoso, porque ao fim e ao cabo os membros do cavalo estão activos e sincronizam-se no movimento do passo, de um passo que parece vigoroso e harmónico, redondo, e que as árvores continuam a malucar de um lado e do outro, sempre as mesmas árvores, de todas as cores, diz, e perde-se na descrição das cores das árvores, dos troncos?, da folhagem?, perguntamos, e fala no verde e no roxo das árvores, do amarelo e do azul, do encarnado e do prata, diz o prata, fala em árvores brancas, árvores que se repetem umas depois das outras no bater aéreo das patas de um cavalo gigante, diz, um cavalo que imobilizado mas em movimento vai ganhando corpo e cresce e as árvores crescem mas não tanto, como se a vontade do cavalo prevalecesse sobre a da cor da selva. Fala devagar quando fala de Fuerteventura ou quando se lembra da alegria de Lisboa. Uma vez também disse que tinha uma vontade de barco e quando disse isto ninguém percebeu ao certo o que queria dizer, por minha parte só passados uns anos entendi o que era possuir um arranque daqueles, que tinha uma vontade de barco, e braços de barco e uma cabeça feita de barco, que tinha aquelas maneiras tão feitas e tão agrestes e que podia desaparecer para sempre mar adentro, qualquer mar, qualquer praia, diz, e remar meses e anos e todo o tempo rumo ao chão do mundo ou ao tecto do mundo e evitar terra quando a visse, inverter rota ao mínimo avistamento de um objecto fixo, desviar aquele corpo de barco dos outros, manter os olhos na mais ínfima das folas, diz, conservar o barco num ideal de movimento contínuo, incessante, um remar eterno, um remar de não querer chegar nunca, remar até que dele se esqueçam e ele próprio, muito antes disso, se esqueça daquele corpo de barco que a língua de um país lhe tinha ensinado.  

Retirado daqui

segunda-feira, 16 de novembro de 2015

Fur - Matilde Campilho

                                         com cara de Whitman
foi assim que você pensou que eu viria ao mundo
foi assim que que você me viu na floresta
foi assim que você me viu pendurado no poste elétrico
sempre pendurado num ramo qualquer, sempre usando
o verão.
você se lembra daquele verão no Brooklin
em que ficámos perseguindo os bombeiros
durante todo o dia apenas para ver
uma vez e depois outra vez
o leque aquático que se abria sobre o fogo?
você citava poetas húngaros mas nesse tempo
eu só queria saber de inventar uma língua
que não existisse.
você se lembra do concierge que nos recebia
na pensão do Brooklin como se nunca
nos houvesse visto antes?
e não havia semana que passasse
em que nós não dormíssemos
pelo menos uma madrugada
na pensão do Brooklin.
me lembro dos dólares amassados
que eu semanalmente tirava do bolso
para pagar a Doug
eu sabia o nome de Doug
o Doug nos tratava disfarçadamente
por menina e menino.
você falava que os dólares vinham
sempre com uma forma diferente
 

eu adoro como você consegue tirar um coelho do bolso  
eu adoro como você consegue tirar uma lâmpada do bolso  
eu adoro como você consegue tirar a Beretta 92fs do bolso   


foi assim que você pensou que eu ficaria
no mundo
com corpo de besta vestida
usando um lápis pousado na orelha


foi assim que você me viu
pedindo três ovos para Miss Elsie
a senhora da mercearia na Court Street
ela me deu oito ovos
porque ela sempre dava alguma coisa
ela me achava uma graça e ela não acreditava
em números ímpares. eu também não.
me lembro de você na mercearia
do Brooklyn


você costumava ficar lá atrás
brincando na secção das ferramentas.
se eu tivesse mais do que um coelho,
uma lâmpada ou uma pistola
eu teria te comprado um Black n' Decker
eu acho que você seria a pessoa mais feliz da ilha
com um Black n’ Decker enfiado no cinto.


foi assim que você pensou que eu ficaria no mundo,
usando flores em meu cabelo negro,
sempre escondidas no emaranhado dos cachos
sempre escondidas no emaranhado do caos
de minha cabeça negra.


só você sabia quantas flores eu usava
porque agora eu já sei
que você dedicava as noites
à contagem. Deus não dorme
e você também não.


Matilde Campilho. Jóquei. Lisboa: Tinta-da-China edições, 2014.

segunda-feira, 9 de novembro de 2015

O acordeonista na Catedral de Bruxelas

De Bruxelas eu
esperava tudo, talvez
a reprise
do que ali já vivera,
uma noite ao lado
de Jey Crisfar,
chuva e cansaço,
conversas com taxistas
e árabes, mas não
este acordeonista
loiro de 20 anos
diante da Catedral,
sim, a de Bruxelas,
acordeonista loiro e imberbe,
alto e imundo,
a quem doei 2 euros
num excitativo segundo de tacto
entre sua mão e meus dedos fechados
abrindo-se em bojo sobre sua palma,
após fazer com a visão
o rodízio contemplativo e luxurioso,
alternando o foco dos olhos
entre a catedral imberbe e loira
e o acordeonista alto e imundo,
a quem ensaiei, por 20 minutos
que mais pareceram seus 20 anos,
perguntar seu nome, quiçá filmá-lo
com a câmera que deixara
no Berlimbo,
ou imaginá-lo fotografado em série
por Adelaide Ivánova,
Heinz Peter Knes
ou qualquer fotógrafo
íntimo que me cedesse
os direitos autorais
desta imagem loira,
imunda,
para que eu de alguma forma
possuísse
este acordeonista imberbe e alto
em seus 20 anos,
a quem então batizo
em minhas glândulas
e passarei a chamar de Loïc
ou quem sabe Guillaume
pelo resto dos meus dias
após falhar em criar os colhões
de pedir seu nome,
e é assim, sr. Loïc ou Guillaume
aos 20 anos imundo e acordeonista,
que a você eu dedico
diante da alta e imberbe
Catedral de Bruxelas,
estes 2 euros
e uma ereção.

Ricardo Domeneck 
Bruxelas, 8 de outubro de 2010

Poema retirado daqui

segunda-feira, 2 de novembro de 2015

Mr Punch in Soho - Jonh Stammers

You would recognise that hook nose anywhere,
his hump and paunch, the shiny pink erection of his chin.
Withered, crossed legs on the barstool
dangle like transplants from a much smaller body.
He could have found his ideal slot in the Gestapo,
been a dab hand with a blinding iron.
And the scold’s bridal would have been right up his Strasse.
He has, they say, killed seven police:
old-time rozzers on the beat
more deserving of a saucy come-on from the street girls
than the last rites down a back alley.
And two wives. Poor old Mrs Punch finally copped it
one night after he’d done a few dozen barley wines
and as many double gins. She fought fiercely
against an assailant or assailants unknown
the Pall Mall Gazette reported.  Never caught.
Never charged. And pretty little Mrs Punch
number two won’t be taking a bath
in those bubbles again. That’s the way to do it!
Just picture him afterwards, cock in hand
like an old chimp with a hard, green-tipped banana.
And the baby, where’s the baby?
It’s something to make the Devil into the good guy:
how children cry out for him
to drag Punch down to hell for eternal punishment.
But he’d throttle Lucifer when his back was turned
and be back on that stool for closing time.
Or maybe that’s where he’s been all these years
of grown-up sleep, peaceful and free of nightmare.
It’s what you can’t see in the stare of his wooden yellow eye.
Don’t look, there’s his stick, the awful stick!


Jonh Stammers. Retirado daqui.